terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

QUATRO HORAS


              

Eu queria estar tomando banho e seguindo o dia normalmente. Mas não me importa estar atrasada para o trabalho, já não consegui dormir essa noite e escrever pelo menos me alivia a mente.

Eu tive insônia a noite toda, mas não foi por causa de um pesadelo, melhor seria. É a realidade cruel demais que supera qualquer profundeza do inconsciente dessa vida.

Eu queria dizer que as notícias são sensacionalistas, que é um exagero midiatíco muito intenso. Mas nem a catarse mais imensa  consegue se aproximar de tamanho sofrimento.

(E catarse passa, alivia. Hoje o que a alma sente é uma dor que não se mede, não se descreve, não se imagina.)

Eu queria que sua dor também fosse apenas na alma, como a minha. Mas não, suas marcas são físicas, seu corpo está  desfigurado, sua face desconstruída.

Eu queria estar ao seu lado, te abraçando, dizendo tudo vai passar. Mas não vai, nunca passa, e os gritos de tantas mulheres desesperadas ainda são chacotas para esse mundo ao contrário.

Eu queria ser sua vizinha e ter escutado o primeiro grito de socorro para arrombar aquela porta em prontidão. Mas outras Elaines gritam, gritaram e gritarão, e ninguém  as escutarão.

Eu queria ter atropelado aquele rapaz  quando ele estava a caminho da sua casa. Eu ia sentir culpa, eu nunca saberia o que eu teria evitado. Mas eu nem mais dirijo nesses dias amargos.

Eu queria poder limpar a sua casa, tirar todas aquelas manchas horrorosas na parede registradas. Mas não haverá sabão, tinta ou qualquer produto capaz de amenizá-las.

Eu queria parar de falar de mim, falar de ti, falar de nós. Mas temos que ser nós, pois a sororidade ainda é a nossa única arma, nossa única voz.

Eu queria tanta coisa para minha vida, para minha sina, meu trabalho, meu filho, meu mundo, meu ser. Mas ainda vejo que a mulher tem que lutar é apenas para sobreviver.

Eu queria somente fazer doce e agradável poesia. Mas cada palavra tem o pesar de tantas feridas...