segunda-feira, 18 de junho de 2007

ASAS

O médico assustou-se com aquele buraco. Não tinha como fechá-lo de modo algum. Na realidade nunca havia visto um caso como aquele. Nunca. Passou muito tempo pesquisando alguma solução. Depois se suicidou.
Na procura desesperada por alguma resposta, ainda na infância do garoto, os pais acharam relatos de casos semelhantes que foram levados à fogueira durante a inquisição. Talvez houvesse mais casos perdidos na história, mas possivelmente as pessoas que passaram por esse infortúnio mantiveram-se incógnitas.
Não era sempre que acontecia, mas, volta-e-meia escapavam-lhe alguns pensamentos pelo buraco e todos conseguiam exergá-los sobre a cabeça. Não adiantava curativo, lenço, chapéu, tampão. Nada. E não se sabia em qual momento eles surgiriam; não tinha jeito, quando menos esperava lá estavam as idéias todas a mostra, nuas, cruas, explícitas, ofensivas.
Mesmo na idade mais inocente, cuja cognição se encontrava em processo formativo, no tempo em que as idéia eram coisas – coisas: mãe, pai, casa, chupeta – era assustador ver tudo sobre a cabeça do garoto. Mas o tudo foi só piorando conforme as idéias iam se desenvolvendo e ele tendo o pensamento mais complexo; até os complexos lhe escapavam.
E era o mesmo tempo-espaço dos pensamentos mentais e não das idéias traduzidas linearmente pela linguagem. Eles vinham violentos, confusos, emaranhados, poluídos, obcecados. E não calavam; pareciam nocautear os pensamentos tão bem guardados das cabeças que o assistiam e o condenavam. Gritavam, cobravam, descobriam, desejavam, sonhavam, imaginavam. Era hologramaticamente tudoaomesmotempoagora. Era o caos.
Já que não tinha como evitar a fuga repentina dos pensamentos, os pais trataram de tentar, pelo menos, ensiná-lo a policiar ou disciplinar as idéias. Inútil. Quanto mais vivia, mais apreendia o mundo, mais idéias tinha, mais contraditória compreendia (compreendia?) a existência humana.
Assim só lhe importava aprender como viver em paz. Na verdade a fuga dos pensamentos lhe dava um prazer orgânico muito intenso, era um gozo. O que o incomodava era a reação dos outros; “nós não somos obrigados a ver e ouvir seus pensamentos!”
Deu um basta nessa hipocrisia. Sabia que no fundo todo mundo também pensava. Passou a viver sozinho. E foi bem mais feliz.

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